Há quase dois anos, Luca Kumahara abriu pela primeira vez publicamente sobre a sua identidade de gênero. De lá pra cá, muita coisa mudou. O atleta resolveu sair da seleção feminina para o início da hormonioterapia para a transição de gênero. Depois, estreou no masculino do tênis de mesa nacional e internacional. Realizou a cirurgia de mastectomia masculinizadora, cirurgia de retirada da glândula mamária feminina, e vive como atleta uma nova fase na carreira. Prestes a comentar os Jogos Olímpicos de Paris 2024 para a TV Globo e o sportv, Luca analisa e comenta tudo que passou até aqui nesse dia do orgulho LGBTQIAP+.
- De alguma forma, eu aprendi a me conformar, mas nunca foi um lugar confortável pra mim. Eu acho que passar por esse momento agora, aos quase 30 anos de idade, depois de tanta bagagem no tênis de mesa, foi uma loucura. Sentir coisas que eu nunca imaginei que ia sentir, mesmo antes do campeonato, quando eu estava tenso e tudo mais. Não imaginei que fosse ser da forma que foi, no sentido de sentir tanto nervosismo, de não conseguir controlar as emoções. Assim, eu acho que eu tinha uma expectativa muito alta comigo mesmo, de autocobrança e tudo mais - relembra ele, que vai completar 29 anos em julho.
Ao sair da categoria feminina, Luca fez a escolha de iniciar o tratamento com hormônios, o que zerou o ranking do atleta com a confederação nacional e internacional. Basicamente, era o início de uma carreira sem pontos depois de tantos anos na modalidade.
- Era um momento muito marcante em vários aspectos, não só para mim, como para a causa, para a comunidade trans, para o esporte. Eu acho que é difícil de falar ainda como tem sido para mim, porque eu joguei poucos torneios, até agora foram só três torneios no masculino - comenta ele, que acha ainda mais complicado projetar o futuro: - É muito difícil ter uma base, os torneios foram muito espaçados. Estava acostumado a jogar um torneio a cada semana praticamente, jogar liga, viajar pra lá e para cá e, agora, estou nesse processo, nesse momento de jogar pouco. Acho que é difícil de mensurar ainda, de descrever como que tem sido, porque ainda não sinto que estou super na ativa como eu gostaria, sinto que foi só esse comecinho, então é difícil de dizer.
Hormonioterapia
Luca Kumahara está há um ano passando por tratamento com testosterona. O acompanhamento da hormonioterapia é feito pelo endocrinologista Leonardo Alvares no laboratório de pesquisa do exercício e qualidade de vida do Centro Universitário São Camilo.
Hoje, os níveis hormonais do atleta já atingiram os valores de homem cisgênero. Os resultados são todos superiores a homens trans que não praticam esporte. Houve aumento de 5,3 kg no peso total, sendo que a massa magra cresceu 26,05% e houve uma redução de gordura de 69,23%. Os resultados são positivos no desempenho atlético de Luca, com aumentos notáveis de força muscular, potência e capacidade aeróbica, otimizados pela alta intensidade do exercício. Mas a adaptação ainda está em processo.
- Eu me sinto realizado em muitos aspectos, realmente aconteceram muitas coisas que eu estava esperando que acontecessem. Do lado pessoal, eu acho que tenho me aproximando cada vez mais de quem eu realmente sou e sempre fui. Aí eu falo bastante de aspecto físico também que acaba trazendo uma paz interior maior, ao mesmo tempo não tem sido um processo tranquilo, não é um processo fácil. Junto com isso vieram muitos desafios, principalmente profissionais, acho que muitos momentos de dúvida. Algumas coisas que eu achei que seriam um pouco mais fáceis.
Mastectomia masculinizadora
Em março, Luca Kumahara realizou o sonho de fazer a cirurgia conhecida popularmente como mastectomia masculinizadora, que era sua vontade antes mesmo de conhecer o tratamento hormonal, O médico Guilherme Mattar realizou o procedimento, que reduz a mama ao máximo, para que o tórax fique com aparência mais masculina.
A cirurgia em si foi bem tranquila, mais tranquila do que eu esperava. Eu nunca tinha operado, então eu tinha um certo medo de operação, mas foi tudo tranquilo. No pós-cirúrgico, um tempinho depois da cirurgia, eu tive uma complicação na cicatrização do mamilo direito, causou bastante preocupação, mas a gente conseguiu contornar a situação. Ainda não estou 100%, mas acho que o 100% mesmo, ele só vem com um ano de cirurgia.
O mesatenista contou que ainda sente um incômodo em alguns movimentos.
- Eu estou nesse processo ainda de voltar ao corpo se acostumar a fazer todos os movimentos, a forçar, a abrir mais a mobilidade, abrir mais o peitoral. Mas, de acordo com o doutor Guilherme, esses incômodos, essa dorzinha ainda que fica é supernormal. São alguns meses ainda para cicatrizar 100% internamente, então tudo faz parte. Mas eu estou superbem, fazendo tudo já, mas com esse incomodozinho ainda que é normal.
O futuro
Muitas coisas mudaram em um curto espaço de tempo na carreira do Luca Kumahara. Na próxima edição dos Jogos Olímpicos, ele estreia como comentarista na TV Globo e sportv. Além disso, segue jogando no masculino pelo Brasil. Quando a pergunta é futuro, são muitas dúvidas que ainda surgem em relação ao que vai acontecer.
- Eu sei que começar uma carreira quase que do zero, por começar a competir em uma categoria nova, exige exposição a muitas coisas que eu não mensurava muito, não imaginava muito, e eu sei o que é abrir mão de muita coisa para jogar profissionalmente, porque vivo isso por muitos anos e é uma coisa que hoje eu não sei se estou 100% disposto a fazer.
Atualmente, Luca tem desempenhado outras funções relacionadas ao tênis de mesa e ao esporte de alto rendimento. Kumahara palestra sobre a modalidade, sobre atletas trans, sobre esporte e pessoas transgênero. Também tem tido oportunidade de dar oficinas de trabalhar como auxiliar ou treinador convidado em escolinhas.
- Eu estou muito nessa fase agora de dúvida. Mas eu gostaria muito ainda de, nem que seja por uma temporada, jogar uma liga na Europa. Tudo muito novo ainda; ao mesmo tempo que é já um ano, é ainda um ano também. Então é um ano de muitas mudanças físicas que aconteceram comigo e que é difícil eu ter resposta também em relação a rendimento físico. Eu sei que eu tenho que ter paciência para conseguir decidir alguma coisa agora, mas no princípio meu plano era continuar sendo jogador profissional por mais um tempo e eu já não tenho mais certeza absoluta disso, mas eu gostaria.
Vida além (ou não) do esporte
Com três Olimpíadas no currículo, Luca Kumahara pôde, a partir desse ano, também se permitir viver de uma forma menos rígida, uma vez que não representa mais a seleção. Pesou o lado pessoal e a busca por se priorizar mais.
- Olhar um pouco mais pra mim depois de tanto tempo olhando muito mais pra carreira que para outra coisa. E foi o momento que me dei o direito disso. A consequência foi eu me sentir mais livre, mais tranquilo para viver outras coisas.
Nas horas vagas, Luca joga e treina futsal em um time de homens trans, em São Paulo, que tem sido uma experiência que vai além do esporte. É um local de acolhimento e de compartilhar vivências parecidas.
- Tem sido uma experiência incrível pra mim também, é diferente de qualquer uma outra que eu já tenha vivido, porque é com o futsal, um esporte que eu sempre gostei muito e não pude praticar por muito tempo por conta das compromissos com a seleção e o perigo de me machucar. Spartanos (nome do time) é um dos pilares onde eu me sinto com muita vontade e me ajuda nesse processo também de me sentir cada vez mais eu.
Fonte: GE - Globo
Site: https://ge.globo.com